No passado dia 22 de Fevereiro, faleceu um homem de Deus, que me marcou nos tempos da minha juventude... ouvia regularmente o programa que este sacerdote conduzia nos microfones da Renascença... Ao visitar a página da Renascença [rr.sapo.pt], deparei-me com esta notícia e resolvi publicá-la neste blog, transcrita integralmente com os créditos devidamente anotados no final deste texto...
[Dâmaso Lambers nasceu na Holanda mas amava
Portugal e não se conformava com um sistema que considerava que tinha
adormecido os portugueses. Não se envolveu em política, preferiu dar-se e
defender aos mais pobres, porque "o principal é o amor".
Pagou com antecedência o seu funeral porque não quer que ninguém se
preocupe. “Paguei dois contos, naquela altura, para ser cremado. Por isso é que
foi mais caro”, contou à Renascença.
Mas porquê? “Não quero incomodar ninguém. Quero servir”. A ideia repete-se
durante toda a conversa. O padre Dâmaso Lambers é holandês. Nasceu a 9 de Junho
de 1930, mas veio para Portugal em 1957. Era aqui que queria morrer.
“Pedi para ficar e para morrer aqui em Portugal. E vou morrer aqui em
Portugal”, afirmou com convicção. Afinal, já “está tudo pago”.
Aconteceu esta quinta-feira, dia 22 de fevereiro. Tinha 87 anos. O seu
corpo estará em câmara ardente na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica,
a partir das 16h de sexta-feira. O funeral é sábado às 10h30.
Quando concedeu a entrevista à Renascença tinha 87 anos e ainda dava
murros na mesa (literalmente) quando falava de algo que o indignava. Por
exemplo, a pobreza.
“Mas porque é que se preocupa tanto com os pobres?”, perguntou-lhe um
ex-agente da PIDE, já depois da Revolução de 1974. “Porque são os mais
infelizes do país”, respondeu-lhe.
O encontro com a população mais desfavorecida deu-se logo à chegada a
Lisboa, na Penha de França, onde a Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e
Maria tem o convento.
“Aos sábados, ia com uma equipa de rapazes da JOC [Juventude Operária
Católica] arranjar as barracas de idosos que precisavam imensamente de obras.
No telhado, entrava água. Alguns não tinham camas, iam às obras buscar as sacas
vazias de cimento, porque não deixam passar facilmente a água, e muita gente
dormia em cima destes sacos de cimento”, lembrou.
“Foi a primeira coisa da minha vontade: dedicar-me aos mais pobres. Foi
muito bom”. E para que estas pessoas pudessem ir à missa sem “um sentido de
inferioridade em relação às pessoas dos prédios”, o padre que veio da Holanda
foi falar com o presidente da Câmara de Lisboa para pedir autorização para transformar
uma casa numa capela.
“Não sabia como fazer e nem sequer me lembrei de ir primeiro à Junta de
Freguesia, fui logo ao presidente da Câmara”, recordava bem-disposto. “Arranjei
uma casa quase a cair para fazer uma capela e tinha de pagar oito escudos por
ano de renda”.
Ao longo do tempo, foram muitas as histórias do género que reuniu para
contar. O padre Dâmaso Lambers não se conformava com o conformismo de alguns
elementos da Igreja. Muitas vezes ouviu a pergunta (vinda de vários sectores da
sociedade e referindo-se a locais mais desfavorecidos): porque é que lá vais
celebrar missa?
“Então, aqueles pobres também não são gente?”, respondia indignado.
Crítico acérrimo do salazarismo, considerava que os anos de ditadura
fizeram dos portugueses um povo conformado. “O povo estava passivo por
causa do Salazar. O salazarismo absolutamente apagou o povo!” e dá um murro na
mesa.
Mas não restem dúvidas: o padre holandês que se nacionalizou português
“nunca quis ofender Portugal”.
“Eu gosto de Portugal. Nunca quis ofender Portugal. Procuro ter sempre uma
certa diplomacia, um certo cuidado para não chocar. Mas vou dizendo as coisas”.
“’Lá vem o Dâmaso’, ouço muitas vezes”. E sorri. “Porque o principal não é
a Igreja, é a nossa vida de amor. E eu amo.”
“Sou um pregador”
Os Cursilhos de Cristandade terão representado a melhor e a mais dolorosa
experiência do padre Dâmaso Lambers em Portugal. “Era um movimento feito
totalmente para mim”.
Criados nos anos 40 em Espanha, os Cursilhos tinham como principal objetivo
despertar novas lideranças evangelizadoras. “Queríamos converter os cristãos,
dar-lhes uma vivência concreta do Cristianismo”, explica.
Estávamos em 1959/60. O padre Dâmaso Lambers pregava por Lisboa,
acompanhando a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pelas várias
paróquias.
“Esta passagem da imagem era uma tentativa de recristianizar Lisboa, mas
não dava resultado. Toda a gente andava atrás da santinha, mas não para se
converter. Era para pedir a Nossa Senhora. E eu não podia concordar com isso”,
conta.
Por isso, quando passou para primeiro pregador por ordem do bispo auxiliar
D. António de Campos – “que era um bispo um bocado difícil” – começou a fazer
as coisas à sua maneira.
E havia, em Alcântara, “um padre [João Gonçalves] que já tinha estado nos
Cursilhos da Cristandade. A certa altura, ele veio ter comigo e disse: tu
conheces o Movimiento de los Cursillos de la Cristandade?”. Dâmaso Lambers
nunca tinha ouvido falar. “Tu andas a pregar como se faz nesses Cursilhos”,
afirmou o padre João Gonçalves.
O padre Dâmaso explica: “Eu tinha encontrado uma vez, na livraria do
Patriarcado, um livro francês sobre missões populares. E comprei. Tinha uma
série de programas de pregações e o programa mais cativante era o mesmo dos
Cursilhos de Cristandade. Eles, lá em Espanha, também devem ter comprado esse
livro”, conclui, a rir.
“Portanto, eu pregava segundo aquele esquema”. Foram “anos fantásticos”, em
que “me encontrei com Jesus. Em que me encontrei realmente”. Mas havia quem não
gostasse disso – nomeadamente “dois padres, padre Santana e padre Aleixo, que
queriam afastar-me”. Aproveitaram para tal uma ida a Angola do padre Dâmaso.
“Quando cheguei, o meu superior – eu vivia num convento nessa altura, na
Penha de França – disse: ‘durante a tua ausência esteve cá o padre Santana para
pedir se não te podia colocar na província, afastar-te de Lisboa’”.
“No mesmo dia telefonei para o cardeal [Cerejeira] e ele disse: ‘venha cá
imediatamente’”. E nesta altura a narrativa de Dâmaso Lambers mudou para um tom
mais triste. “Sofri muito. Nunca pensei que me fizessem isto, atrás das minhas
costas. Isto é a coisa mais suja que se pode fazer. Foi baixeza”. Foi por isso,
“com lágrimas” que o padre Dâmaso abandonou o movimento que mais se
identificava consigo, com a sua maneira de ver a pregação.
“Ainda me custa imenso”, confessa. “Eu gostava tanto daquele
movimento. Mas saí…”
Dirigiu mais de 100 Cursilhos. “Em Lisboa, na Guarda, Leiria, em Beja,
Évora, nos Açores... Isto foi muito difícil, sofri muito. Porque eu sou
pregador. Eu gosto de falar. Gosto de comunicar”.
Renascença, “o amor da minha vida”
Foi numa das visitas da imagem de Nossa Senhora de Fátima às paróquias de
Lisboa que o padre Dâmaso Lambers conheceu o fundador da Rádio Renascença,
Monsenhor Lopes da Cruz, na paróquia dos Mártires, no Chiado.
Era “uma pessoa muito especial. Simples ao máximo” e “com muita
espiritualidade”, conta no seu livro, “Uma vida de doação” (ed. Paulinas,
2015). “O que mais me tocou foi a sua simplicidade e o amor com que criou a
rádio”, acrescenta.
Quando se conheceram, Monsenhor Lopes da Cruz levou-o a visitar as
instalações da rádio. Eram, em 1960, “ainda muito limitadas”, com dois andares,
mas “com um ambiente formidável” e verdadeiramente uma emissora católica,
considera no livro.
Nesta altura, o padre Dâmaso falou duas vezes ao microfone: uma sobre Nossa
Senhora de Fátima e outra sobre as visitas da imagem de Nossa Senhora às
paróquias lisboetas.
“Fátima não é para pedir”, salientou. “E toda a gente vai a Fátima pensando
em si mesmo”, quando aquilo deveria ser um santuário de amor pelo outro.
Em 1976, a colaboração com a rádio tornou-se mais assídua. Três vezes por
semana: uma para falar aos doentes, outra aos reclusos e, por fim, para o
cidadão comum. Daí em diante, foi assumindo outros programas e horários,
inclusivé a meio da madrugada (2h30), tendo marcado muitos ouvintes.
Foi o caso de um taxista do Porto que, ao conversar com o seu cliente, de
repente percebeu quem ali tinha. “O senhor é o padre Dâmaso da Rádio
Renascença?” Já tinha pensado procurá-lo em Lisboa. O padre Dâmaso sentou-se,
então, no banco da frente do carro e ali ficaram algum tempo a conversar.
“Deitei-me tarde, mas o taxista deve ter dormido bem naquela noite! Jesus é
fantástico! Por vezes, sinto-me tão pequeno, porque Jesus é tão grande e
utiliza até a Rádio Renascença”, escreve no livro.
“Sei que Jesus me ama”
A relação com Jesus começou cedo. Dâmaso Lambers nasceu numa família
cristã, numa casa onde se rezava antes e depois de comer e onde a mãe
consagrava várias vezes a família ao consagrado coração de Jesus.
Com o tempo, alguns irmãos começaram a divergir, a estar mais afastados de
Jesus e era Dâmaso, o mais novo de seis, que os tentava converter.
Hermano Nicolau Maria Lambers (o seu nome de baptismo) nasceu com quase
seis quilos – “isto não tem a ver com tamanho, mas nós somos de origem alemã e
os alemães são pesados por causa dos ossos”. Pouco tempo depois, adoeceu e
perdeu peso. Chegou a pesar menos de dois quilos. O médico avisou os pais que
não havia esperança para aquela criança. E os pais decidiram confiar o filho a
Santa Teresa de Lisieux. O pai terá dito também a Deus que poderia dispor do
seu filho, que o confiava a Ele. O episódio é relatado no livro.
No dia seguinte, a criança começou a melhorar. E terá sido com admiração
que os pais, que nada lhe tinham dito ainda sobre o que se tinha passado, o
ouviram mais tarde dizer que queria ir para o seminário.
“Eu vivo Jesus desde pequeno”, revela. E “quem tomou a decisão por mim foi
Jesus”.
“Nasci em 1930 e fiz a primeira comunhão com sete anos de idade. Desde
então, comunguei todos os dias. Sabe? Quando tinha 18/19 anos, no meu grupo de
rapazes falávamos sobre casar ou ser religioso ou seguir outra vida. Já eram
conversas a sério, sobre a nossa vocação e o futuro da nossa vida. Mas eu não
tive qualquer dúvida. A minha vocação já era realidade”.
Admite, contudo, que nem sempre foi fácil. “Como rapaz, tive algumas
faltas, mas Jesus estava sempre presente. Extraordinário. Ele amava-me”.
Sempre muito auto-crítico, diz que quando “tinha uma falta a vivia mais
seriamente, porque não queria ofender” Jesus. O padre Dâmaso quer dar sempre o
melhor de si. Era um homem “cheio de Deus” e que dá Deus aos homens, escreve o
padre Alberto Oliveira no livro “Uma vida de doação”.
O padre Dâmaso acreditava e fazia tudo por Jesus. E é com Ele no coração
que quis sempre tornar-se melhor pessoa todos os dias e chegar a mais gente.
“Tenho muito respeito pelos santos, mas não lhes peço intercessão. Trato tudo
diretamente com Jesus e não peço muito. Entrego-me”, conta.
A cadeia. “Tinha que me dar sem procurar
os meus próprios interesses”
As pessoas mais desfavorecidas sempre foram o foco do padre Dâmaso Lambers.
Em 1959, foi convidado a fazer umas conferências na cadeia feminina de Tires.
“E, numa semana de folga, eu fui fazer três conferências. Falei sobre
coisas simples da vida cristã. Nada de especial. Umas semanas depois, recebi um
telefonema da Direção Geral dos Serviços Prisionais para saber se eu também não
podia dar essas conferências em outras cadeias. E eu fui fazer. Vi nisto uma
vocação, um chamamento de Deus”, relatou à Renascença.
Lamentava que, até então, nunca um padre tivesse entrado numa cadeia
portuguesa. “É preciso meter-se no mundo dos presos e para isso temos de nos
renunciar a nós mesmos”.
“Não percebi logo isso e quando saía da cadeia apetecia-me mandar toda a
gente para vários sítios. Mas depois compreendi que não eram eles que tinham de
mudar. Eu tinha que mudar. Eu tinha que me dar totalmente, sem procurar os meus
próprios interesses. Não é fácil, mas é gratificante para quem se quer dar,
para quem quer fazer da sua vida dádiva”, conclui numa entrevista que deu à Renascença
em 2009, para a série de reportagens “Vidas Consagradas”.
Em 1982, foi nomeado coordenador nacional da assistência religiosa nas
cadeias portuguesas e era, até há pouco tempo, capelão na prisão do Linhó, em
Sintra (onde vivia).
Em 1987, fundou a associação “O Companheiro”, com o objetivo de ajudar na
reintegração social dos ex-reclusos – “para que pudessem bater a uma porta, ter
ajuda e contar com trabalho durante uns meses”. O lema da associação é: “Para
que não haja Homem excluído pelo Homem”.
Em 2010, foi condecorado pelo Presidente da República, Cavaco Silva, com o
Grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito.
Amar é a solução
No livro que escreveu admite: “Sou um felizardo”. Di-lo convicto, porque se
sente “cheio de Jesus”. E afirmava que, sempre que se dava aos pobres e
marginalizados da sociedade, “Jesus ia consigo”.
“Jesus é fantástico” – disse-o pela primeira vez numa conferência. “Quando
falo de Jesus perco-me”, mas… “Ele deve estar muito triste”. Porquê, padre
Dâmaso? “Deus veio-nos dizer que devemos escutar Jesus. E as pessoas não
ouvem!”, responde com veemência.
E se Jesus viesse à Terra agora, o que faria? “Começava a amar. Porque a
essência de Deus é amor e a essência de Jesus é amor. As pessoas não se amam e
Jesus começava a amar”.
O padre Dâmaso dizia que as pessoas vivem fechadas em si mesmas. E mesmo os
cristãos dão pouco de si mesmos.
“Como é que temos sido católicos? Só por nunca faltar à missa aos domingos
e fazendo alguns outros atos religiosos?”, questiona no livro. Na conversa com
a Renascença, acrescenta: “Digo muitas vezes: sabemos, sem dúvida, rezar
e ir à missa, mas o principal é amar. Amar toda a gente”.
Ao longo da sua vida de dádiva, garantia, nunca procurou ser importante.
“Eu só quero servir. Eu gosto da gente”.
“Eu não quero ser um tipo especial. Eu queria trabalhar; eu queria fazer
bem”. Mas, porque é que, aos 87 anos, ainda trabalha? “Porque eu gosto de
Jesus. Eu acho que não posso parar. Será Jesus a decidir isso”.]
Texto: 22 fev, 2018 -
20:22 • Marta Grosso
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